Copiado do: http://www.pedromundim.net/Violencia.htm
Há
décadas, nenhum assunto permanece tão atual no Brasil como a
Violência Urbana. Já se produziram laudas e mais laudas de artigos,
análises, ensaios e teses na tentativa de equaciona-la ou ao menos
entendê-la, e o tópicopermanece cada vez mais inexplicado.
A idéia agora é desarmar a população, proibindo o porte de armas. Ignoro se as armas roubadas de particulares constituem a principal fonte defornecimento dos bandidos, mas não desejo discutir aqui esses detalhes. Aquilo que não se pode mudar, deve-se ao menos tentar entender, e modestamente proponho-me a analisar as causas profundas da ineficácia que tem até agora sido uma constante no combate ao crime no Brasil.
De
saída percebo um sintoma, no mínimo, esquisito. É a coexistência
perfeita de uma prática tosca e bruta com uma teoria gentil e
benevolente. De um lado, temos a polícia que chega atirando, as
arbitrariedades, a porrada, as prisões superlotadas, os grupos de
extermínio. De outro lado, temos uma legislação extremamente
branda, penas curtas, recursos infinitos, privilégios para menores e
réus primários. Isso fere o senso comum. Afinal, se nossa
criminalidade é reconhecidamente alta, e nossa polícia é
assumidamente violenta, seria de se esperar que as penas previstas
fossem igualmente severas.
Mas
nosso Código Penal está entre os mais brandos do mundo. Crimes que,
nos EUA, colocariam o seu autor 20 anos atrás das grades, aqui
renderiam penas de 2, 3 anos. Sem contar que é praticamente
impossível encarcerar um réu primário. Somados todos os
privilégios, uma pena de 30 anos - a máxima prevista - se
transforma em não mais do que 6 anos efetivamente atrás das grades.
Um cidadão pode matar sua família inteira que não passará mais
que 6 anos na prisão. Se um adolescente de 17 anos e 364 dias de
idade resolver metralhar sua escola inteira, ficará encarcerado, no
máximo, até os 21 anos. Os recursos são julgados com o réu em
liberdade. Já se cogitou até instituir uma moratória para réus
primários, e então poderíamos dizer que todo brasileiro já nasce
com o direito inalienável de cometer um crime. Dois não pode, mas
um pode.
De
fato, nossa legislação é tão avançada que parece mais apropriada
a certos países altamente desenvolvidos, onde a criminalidade é
baixíssima e o perfil do criminoso é o de um cidadão comum com
problemas psicológicos. Por aqui, não há ignomínia maior do que
propor a adoção da pena de morte, a qual, no entanto, consta do
Código Penal de países como os EUA, a Inglaterra e o Japão, que
nada tem de bárbaro ou incivilizado.
A
conclusão inevitável é de que somos hipócritas.
Tolera-se
a violência na prática, mas não na teoria. Mas qual é, afinal, a
finalidade disto tudo? Somos mesmo movidos pelo nobre intento de
proteger a criança, o adolescente e o cidadão honesto que cedeu a
um instante de desespero? Se o intento é esse, não sei, mas o
resultado é diametralmente oposto.
Sabe-se
que a dificuldade em processar e encarcerar menores de idade
produziu, neste país, uma inaudita criminalização da juventude. Os
traficantes dos morros recrutam sua mão-de-obra preferencialmente
entre as crianças e os adolescentes. Faz sentido: o adulto, se é
preso, fica na cadeia; o menor, se é preso, logo é solto. Os
traficantes nunca dão a um maior o emprego que pode ser dado a um
menor.
Há
também toda uma mentalidade de atribuição das causas do crime a
"fatores sociais" que anulam a culpa individual. O bandido,
na verdade, foi premido a cometer seus crimes pela ordem social
injusta. Essa ideologia é legado do pensamento marxista que até
hoje norteia nossa intelectualidade, tornando-a incapaz de abordar
qualquer fenômeno social sem nele enxergar os atores da luta de
classes. Assim, de um lado não está o bandido, mas o "povo da
favela", e do outro não está a polícia, mas o "órgão
de repressão". Somos levados a crer que qualquer ação
repressiva é necessariamente injusta e ineficaz, e que o crime só
pode ser erradicado se forem eliminadas as causas sociais da
criminalidade.
Ora,
sabemos que a criminalidade é fenômeno extremamente complexo, que
nem todo crime é motivado por carências materiais, que existem
vários perfis distintos de criminosos, que as causas sociais e
psicológicas do crime não podem ser sequer conhecidas com exatidão,
muito menos eliminadas. Mas não adianta afirmar isso: o trauma da
repressão violenta na época da ditadura parece ter atordoado de tal
forma a esquerda tupiniquim, que ela até hoje é incapaz de
distinguir um torturador de um guarda de trânsito.
O
subproduto dessa vitimização do criminoso é o desprezo pela vítima
do criminoso. Se ele cometeu o crime, é porque teve um motivo, e a
vítima há de ter feito alguma coisa para merece-lo. Nesse contexto,
surgiram em nossa jurisprudência vários expedientes para se
justificar a absolvição de réus confessos, como a tese da Legítima
Defesa da Honra, que não consta da lei escrita mas até recentemente
era invocado para justificar crimes passionais.
Como
a maioria dos crimes passionais é cometida por homens, nossa justiça
foi repetidas vezes criticada por seu machismo. Mas eu me lembro de
ao menos alguns casos (como o de Dorinha Duval) em que a mulher matou
o marido e foi igualmente absolvida.Penso que a tese do machismo não
está correta: o que há de fato é uma justificação do crime
passional per si, seja ele cometido por homens ou por
mulheres.
Critica-se
também nossa justiça por ser discriminatória contra minorias. Mas
o cacique Paulinho Paiakan, que confessadamente estuprou uma menina,
não foi absolvido? Nesse ponto reside a diferença fundamental
entre uma justiça discriminatória (como era, até recentemente, a
justiça nos EUA) e uma justiça como a nossa. Nos EUA pode-se
conceber um branco estuprando uma índia e sendo absolvido, mas não
a absolvição de um índio que estuprou uma branca. Aqui, o branco
que estupra a índia não vai para a cadeia, nem tampouco o índio
que estupra a branca.
Enfim,
o crime se comete porque é sempre justificável. Vemos agora, com
clareza, a falsidade de nossa premissa inicial, de que uma alta
criminalidade deveria redundar em uma justiça severa. A relação é
o oposto: se o crime ocorre com freqüência, ele se banaliza.
Torna-se uma coisa sem importância, que não se deve punir
severamente.
Nos
meios políticos, raramente surge alguma proposta no sentido de
reformar nosso código penal, tornando-o mais severo. As propostas
que surgem são de se criar mais um dispositivo que dificulte ainda
mais a colocação de um criminoso atrás das grades, sempre
argumentando-se que o sistema penitenciário brasileiro é desumano,
que a cadeia não recupera ninguém. É verdade que nossas prisões
estão superlotadas, mas também é verdade que nossa população
carcerária, em termos relativos, é muito pequena. Há menos gente
na cadeia no Brasil do que nos EUA, país que tem uma taxa de crimes
bem menor. Nossas leis são brandas porque temos elevados ideais de
proteger e recuperar o detento? A violência costumeira de nossa
polícia desmente esta premissa.
O
real intento é pragmático: as penas são leves porque assim a
população carcerária permanece pequena, e o estado fica
desobrigado de despesas com capturas, aparelhamento da polícia,
construção e reforma de complexos penitenciários. E a população
que se lixe, ou que aprenda a fazer justiça com as próprias mãos.
Isto
é mau, porque está ficando cada vez mais evidente que aquilo que
efetivamente contém o crime não é a polícia, e sim a Justiça. O
bandido, em geral, não tem escrúpulos de ordem moral, não pensa no
futuro, exceto o futuro imediato, e não tem medo do perigo.
Por
esse motivo eu discordo dos que afirmam que a solução para o crime
é a pena de morte. Como vai funcionar, se o bandido não tem medo de
morrer?
A expectativa de vida de nossos traficantes é de vinte e
pouco anos, eles sabem disso e não se importam, pois estão
acostumados a ver a morte de perto desde tenra idade. Mas se o
bandido não tem medo de morrer, por outro lado ele tem medo de uma
vida longa e infeliz em uma prisão, de onde ele não possa
evadir-se, e onde ele não tenha acesso a nenhum dos gozos que o
motivaram a levar uma vida de crimes.
Lembro-me
de haver lido certa vez que o mais perigoso traficante da Colômbia,
de tanto em tanto era acometido por crises de choro ao pensar na
possibilidade de ser extraditado para os EUA. A frase lançada por
Los
Extraditables
nesta época, "Preferimos um túmulo na Colômbia do que uma
prisão nos EUA", não era apenas uma peça de retórica de mau
gosto. Somente uma legislação sem brechas e uma prisão sem brechas
são capazes de conter os criminosos de alta periculosidade, como os
nossos. A pena máxima pode ser a pena de morte, ou de prisão
perpétua - não importa. O que interessa é que as penas, como um
todo, sejam severas e aplicadas com rigor.Não tem jeito. Por mais
que demos asas à imaginação, voltamos sempre ao mesmo ponto: a
solução para o problema da criminalidade consiste de manter o
criminoso na cadeia.
Que
chato, hein?